8 de fevereiro de 2012

Faxina

Água com sal grosso de dentro para fora e descendo escada abaixo para levar embora tudo de ruim. Água benta de fora para dentro para trazer boas influências. Assim finalizamos a limpeza do apartamento para o qual vamos nos mudar. A primeira faxina sempre é a mais difícil, com resquícios de cimento, massa corrida e ferrugens de lata de tinta pelo chão. É necessário muito sabão, vassoura e palha de aço para tirar todas as manchas. Disposição, espátula, suor. Mas quando o piso seca claro e brilhante, nota-se que valeu à pena. E quase dá para ver a agitação que um dia vai haver lá dentro, os risos e brincadeiras de garotas.
Esses "rituais" de nova morada me lembram um trecho de Chocolat, que li essa semana mesmo:

À luz de uma vela, exploramos nosso novo território; os velhos fornos ainda surpreendentemente bons debaixo da gordura e fuligem, as paredes apaineladas de pinho, as telhas de barro enegrecidas. Anouk descobre o velho toldo dobrado numa dependência nos fundos e o arrastamos para fora; aranhas se espalham, saindo debaixo da lona desbotada. Nossa moradia fica no sobrado da loja; um quarto-e-sala com banheiro, uma varanda ridiculamente minúscula, um canteiro de terracota com gerânios mortos... Anouk faz cara feia.
- É tão escuro, maman (...) E tem um cheiro tão triste.
Ela está certa. O cheiro é como a luz do dia aprisionada por anos até se tornar acre e rançosa, o odor do excremento de camundongo e dos fantasmas de coisas esquecidas e não lamentadas. Tem o eco de uma caverna, o pequeno calor da nossa presença serve apenas para acentuar cada sombra. Pintura, luz do sol e água com sabão nos livrarão da sujeira, mas a tristeza é outra história, a ressonância desolada de uma casa onde ninguém tinha rido durante anos... 
(...)
Acendemos uma vela para cada cômodo, em cores dourada, vermelha, branca e laranja. Prefiro fazer meu próprio incenso, mas, numa crise, os bastões comprados prontos, de lavanda, cedro e capim-limão, servem para quebrar o galho. Cada uma de nós pega uma vela, Anouk soprando sua corneta de brinquedo e eu batucando numa velha frigideira com uma colher de metal. Por dez minutos, circulamos por cada cômodo, gritando e entoando no tom máximo de nossas vozes - Fora! Fora! Fora! -, até sacudir as paredes e pôr os indignados fantasmas em fuga, deixando em seu rastro um débil cheiro de queimado e boa quantidade de reboco caído. Olho por trás da pintura rachada e enegrecida, por trás das tristeza de coisas abandonadas, e começo a ver vagos contornos, como a pós-imagem de uma estrelinha de fogo segura na mão - aqui uma parede reluz com pintura dourada, ali uma poltrona, um tanto decrépita, mas colorida de um laranja triunfante, o velho toldo subitamente brilhando como as cores semi-ocultas saídas de sob as camadas de sujeira. Fora! Fora! Fora! Anouk e Pantoufle batem com os pés e cantam e as débeis imagens parecem ficar mais brilhantes - uma banqueta vermelha junto ao balcão de vinil, uma corda de sinos contra a porta da frente. Claro, eu sei que é só um jogo para reconfortar uma criança assustada. Trabalho terá de ser feito, trabalho duro, antes que qualquer coisa se torne real. E ainda assim, no momento, é suficiente saber que a casa nos dá boas-vindas, tal como nós a ela. Sal grosso e pão no batente da porta, para aplacar quaisquer deuses residentes. Sândalo sobre nosso travesseiro, para adoçar nossos sonhos. Mais tarde, Anouk me disse que Pantoufle não estava mais assustado, de modo que ficou tudo numa boa.

E a história segue. Espero que do mesmo modo que Vianne conseguiu arrumar sua nova casa e chocolateria de modo acolhedor, consigamos organizar nosso novo lar para que seja também aconchegante. Recomendo muito este livro a todos, ainda tenho que tirar um post só para uma resenha, já que já fiz várias menções, sem nunca deixar muito claro toda a história do livro e todos os porquês de lê-lo todo início de ano.
Hoje à noite a lua  está cheia e brilhante no céu. Brilhando tanto que os olhos até ardem de olhar para ela por muito tempo. Até parece que ganhou luz própria. Já não era sem tempo...