30 de outubro de 2010

Trust me

(...)
Sempre o pianista arranja um jeito de voltar. Aparecer em miniaturas, ou em grandes escalas, em músicas. Mais uma vez ele me ensina lições, mostra o quão sábio ele pode ser enquanto eu pareço uma criança indefesa diante do jovem de alma idosa.
Aquele não era o tipo de problema que eu gostaria de levar até ele, mas foi inevitável, aquela semana não era das melhores.
- Eu notei sua ausência, menina. Corpo presente, cabeça não sei onde. Você não é assim, eu queria saber o que está acontecendo.
- Eu... - não sabia como continuar.
- Ei, não é uma cobrança de patrão, ok? É, antes de tudo uma preocupação pessoal. Uma conversa de amigos.
- Obrigada, por se preocupar. Mas, bom, não é nada realmente importante. Problemas de casa. Acontecimentos pelo quais eu nunca imaginei que passaria, entende?
- Tem certeza que não quer se abrir?
Era tarde, o sol ainda alto, e nós diante da porta de vidro que dava para a área da piscina. Mas ali, sentados em bancos ainda do lado de dentro de casa, à sombra, eu até podia sentir o frio chegando, de dentro de mim, junto com as lembranças. Raiva, raiva gélida. Tristeza amarga. Eu sentia todas as minhas crenças se despedaçando, todas as aquelas lembranças da infância e talvez até de um passado recente. Tudo parecia tolo diante das circunstâncias.
- Talvez colocar em palavras seja pior, ou não. Não sei. São problemas de família.
Ele lançou-me o olhar mais profundo que eu podia esperar daqueles olhos cor de esmeralda. E eu senti que, seu eu não falasse, ele acabaria descobrindo meus segredos sondando minha alma. Contei a ele. No final, me senti aliviada por ter alguém em quem confiar. Meu pianista, fonte de tanta dor e decepção, de tantas expectativas não atendidas, também meu porto seguro?
Silêncio. Baixei meu olhar para a pedra do chão. Ele pegou minha mão, fria e seca, com as as dele, quentes, de pele macia. Quase podia sentir sua circulação... E ele me disse uma de nossas letras, escrita em viagens, em estradas, em paradas, na imensidão do mundo.

We're only taking turns
Holding this world
It's how it's always been
When you're older you will understand

- Quando for mais velha você vai entender...

26 de outubro de 2010

Paixão

Infelizmente precisei ficar em Campos neste ultimo fim de semana... Por diversas razões. Fiquei chateado de ter que ficar nessa cidade que eu odeio, mas não tive muita escolha e comecei a procurar o que fazer pra passar o tempo...
"There must be some kind of way out of here
Said the joker to the thief
There's too much confusion
I can't get no relief"

Jimi Hendrix - All Along The Watch Tower

Com esse pensamento e um pouco de espírito de aventura, aceitei um convite feito por um amigo para assistir uma partida do time daqui, o Goytacaz. Time da 3 divisão do campeonato estadual, em atual disputa da copa Rio.
Os dois parágrafos a seguir é uma homenagem ao Marcos Futebol Mundial. Que está de férias...

Situação do confronto:
O elenco do Goytacaz esteve muito concentrado para a partida do sábado (23/10) contra o América às 16h pelo primeiro jogo do returno da 3ª fase da Copa Rio 2010. Uma vitória em casa daria mais tranquilidade para o grupo nos dois jogos finais, que serão realizados fora do Aryzão.

O jogo:
O time do Goytacaz pressionou o América desde o início da partida, mostrando muita raça, condicionamento físico e disciplina tática. O esquema armado foi um 4-4-2 simples, onde os meias avançavam e além de dar suporte ao ataque, prendiam os fracos laterais do time adversário na defesa, tornando o América uma presa fácil na expressiva vitória por 3 a 0.

O ponto onde quero chegar:
O mais incrível de ter saído de casa numa tarde de sábado para ir até um estádio assistir uma partida de 3 divisão de campeonato estadual podia até ser um bom entretenimento, pois o baixo preço do ingresso, somado a falta de técnica dos jogadores me renderiam ótimas horas de diversão. Mas o que eu realmente queria ver, era o tamanho e o fanatismo da torcida Goytacaz.
O time não disputa a primeira divisão a 19 anos! Mas as pessoas continuam a encher os estádios em todos os jogos. São jovens, crianças, velhos, mulheres... É impressionante e inexplicável. Eu via nas arquibancadas as pessoas totalmente confortáveis, alegres, mesmo antes do início do jogo. Alguns torcedores já haviam bebido antes da entrada do estádio, no bar do Goyta, outros levavam sua esposa e filhos e ainda alguns faziam parte de uma banda marcial que tocava de forma afinada clássicos da música popular brasileira, hinos do clube e músicas da torcida. Era simplesmente um espetáculo a parte. Não o jogo, mas as pessoas. Estavam muito felizes alí, ninguém reclamava das instalações ruins ou do time. Todos se cumprimentavam, distribuiam balões-branco-anil, apitos, doces e bolas de plástico para as crianças.
Não era o time que estavam celebrando naquele momento. Era a paixão!
Finalmente eu pude entender o que mantém as pessoas felizes. Não é o amor, isso as faz permanecer vivas. Mas a paixão as faz SENTIR vivas. E a paixão, essa não tem preço e nem explicação. No futebol e na VIDA!

Segue abaixo um link para mais fotos do Goytacaz.
 FOTOS
Em Campos dos Goytacazes, eu NUNCA na minha vida me sentirei campista. Mas Goytacaz, eu já me sinto.

17 de outubro de 2010

Do outro lado do muro

Algumas coisas são engraçadas.  Outras são exagero. Talvez seja engraçado acordar com frases bizarras, do tipo “Lave a bunda!”, ditas aos berros. De longe, talvez não dê para escutar os tapas, mas hoje eu estava bem perto, praticamente no cômodo ao lado, e escrevo nos resquícios dos sons que foram dolorosos de escutar. Nos gritos, na falta de paciência, nos machucados feitos propositalmente.
Penso que muitos lares têm suas discórdias e esse é mais um daqueles lares não-convencionais, em que habitam um homem e uma mulher apenas, irmãos, que já passaram dos sessenta. Habitam, por vezes, alguns “amigos” que ela traz para casa. Senhores de chapéu, que ficam por alguns dias, chegam com compras do supermercado, agradam-na até ficar bem mansa. Nesses dias não há gritos, nesses dias não há discórdia. Nesses dias, a TV também não fica ligada até tarde. E o irmão, ah, esse deve ser mandado cedo para a cama.
As brigas, voltando a elas, acontecem basicamente por um motivo banal: a hora do banho. Ele não tem o hábito, pelo que se escuta dela. Dele, pouco se houve, já que não fala muito. Aliás, por meses pensei que não falava. É que ele, Tomé, sofre de algumas disfunções mentais. Hoje escutei seus protestos. Ela o machucava, ele reclamava, e isso só a fazia gritar mais. “Tem que bater pra você tomar banho! Tem que doer, só assim você aprende a tomar banho todos os dias!...” Palavras ditas com vícios da fala, língua enrolada daqueles que não tem uma boa oralidade, de quem apenas grita, mas nos gritos muito faz doer os ouvidos, e não apenas no que diz respeito à altura das falas.
Hoje, como dito, escutei também os tapas. Não foram poucos. Não foram também fracos, a julgar pelo som. E agora, silêncio. Como se tudo fosse sempre tão pacífico. Até trocaram palavras amenas sobre algum assunto depois de todo o estardalhaço, como se conversassem sempre tranquilamente assim. Ele não guarda ressentimentos, nota-se, apesar de toda a falta de paciência que a irmã tem com ele. Ausência de bom senso para compreender que, doente, talvez ele não seja capaz de fazer tudo com perfeição e rapidez, e por isso precisa de alguém que o ajude, que cuide dele. Para isso ele recebe um auxílio financeiro do governo, que ela notavelmente não utiliza para os fins a que é destinado e Tomé, pobre coitado, não vê esse pagamento convertido em atenção e carinho vindos de quem deveria cuidar dele. Não que dinheiro e afeto tenham essa ligação direta, mas a julgar pelos pensamentos vis da irmã que aceita as compras dos homens que hospeda em seu quarto, imaginei que ela veria as coisas através dessa moeda de troca, pelo menos um pouco, ao invés de ser toda irada com ele.
Ele, que gosta de passar o tempo parado ao portão, olhando a rua. Fica em pé, com suas peras magras contrastando com a barriga redonda e a cabeça pequena de poucos cabelos. Uma bermuda e uma camiseta que usa por vários dias. Faz pouco tempo que começou a cumprimentar. Um “oi” tímido, fino, muito baixo. E se perguntamos como está, ele diz “A ‘mema’ coisa”, no mesmo tom cabisbaixo. Num dia de mais ânimos para conversa ele ainda diria que “a ‘fiinha’ não melhora”. ‘Fiinha’ é a maneira como se refere à sua querida irmã, e a resposta deixa claro que, ele pode não guardar rancor, mas não gosta da vida que leva, dos maus tratos. Ninguém gosta, e ele, por falar pouco, não tem menos direito de se sentir assim, por ser deficiente não tem menor direito de exigir respeito.
Ela é do tipo que parece estar brigando mesmo quando conversa normalmente com alguém. Ele, bom, ele é o Tomé, senhor, meu vizinho, a quem eu não agüento mais escutar ser mal tratado.