17 de outubro de 2010

Do outro lado do muro

Algumas coisas são engraçadas.  Outras são exagero. Talvez seja engraçado acordar com frases bizarras, do tipo “Lave a bunda!”, ditas aos berros. De longe, talvez não dê para escutar os tapas, mas hoje eu estava bem perto, praticamente no cômodo ao lado, e escrevo nos resquícios dos sons que foram dolorosos de escutar. Nos gritos, na falta de paciência, nos machucados feitos propositalmente.
Penso que muitos lares têm suas discórdias e esse é mais um daqueles lares não-convencionais, em que habitam um homem e uma mulher apenas, irmãos, que já passaram dos sessenta. Habitam, por vezes, alguns “amigos” que ela traz para casa. Senhores de chapéu, que ficam por alguns dias, chegam com compras do supermercado, agradam-na até ficar bem mansa. Nesses dias não há gritos, nesses dias não há discórdia. Nesses dias, a TV também não fica ligada até tarde. E o irmão, ah, esse deve ser mandado cedo para a cama.
As brigas, voltando a elas, acontecem basicamente por um motivo banal: a hora do banho. Ele não tem o hábito, pelo que se escuta dela. Dele, pouco se houve, já que não fala muito. Aliás, por meses pensei que não falava. É que ele, Tomé, sofre de algumas disfunções mentais. Hoje escutei seus protestos. Ela o machucava, ele reclamava, e isso só a fazia gritar mais. “Tem que bater pra você tomar banho! Tem que doer, só assim você aprende a tomar banho todos os dias!...” Palavras ditas com vícios da fala, língua enrolada daqueles que não tem uma boa oralidade, de quem apenas grita, mas nos gritos muito faz doer os ouvidos, e não apenas no que diz respeito à altura das falas.
Hoje, como dito, escutei também os tapas. Não foram poucos. Não foram também fracos, a julgar pelo som. E agora, silêncio. Como se tudo fosse sempre tão pacífico. Até trocaram palavras amenas sobre algum assunto depois de todo o estardalhaço, como se conversassem sempre tranquilamente assim. Ele não guarda ressentimentos, nota-se, apesar de toda a falta de paciência que a irmã tem com ele. Ausência de bom senso para compreender que, doente, talvez ele não seja capaz de fazer tudo com perfeição e rapidez, e por isso precisa de alguém que o ajude, que cuide dele. Para isso ele recebe um auxílio financeiro do governo, que ela notavelmente não utiliza para os fins a que é destinado e Tomé, pobre coitado, não vê esse pagamento convertido em atenção e carinho vindos de quem deveria cuidar dele. Não que dinheiro e afeto tenham essa ligação direta, mas a julgar pelos pensamentos vis da irmã que aceita as compras dos homens que hospeda em seu quarto, imaginei que ela veria as coisas através dessa moeda de troca, pelo menos um pouco, ao invés de ser toda irada com ele.
Ele, que gosta de passar o tempo parado ao portão, olhando a rua. Fica em pé, com suas peras magras contrastando com a barriga redonda e a cabeça pequena de poucos cabelos. Uma bermuda e uma camiseta que usa por vários dias. Faz pouco tempo que começou a cumprimentar. Um “oi” tímido, fino, muito baixo. E se perguntamos como está, ele diz “A ‘mema’ coisa”, no mesmo tom cabisbaixo. Num dia de mais ânimos para conversa ele ainda diria que “a ‘fiinha’ não melhora”. ‘Fiinha’ é a maneira como se refere à sua querida irmã, e a resposta deixa claro que, ele pode não guardar rancor, mas não gosta da vida que leva, dos maus tratos. Ninguém gosta, e ele, por falar pouco, não tem menos direito de se sentir assim, por ser deficiente não tem menor direito de exigir respeito.
Ela é do tipo que parece estar brigando mesmo quando conversa normalmente com alguém. Ele, bom, ele é o Tomé, senhor, meu vizinho, a quem eu não agüento mais escutar ser mal tratado.